Entrevista Daniel Motta: “O ponto principal da cultura é recuperar a inutilidade da vida”
Atualizado: 27 de mar.
Em tempos de discussão acerca do Plano Diretor do município de São Paulo, déficit habitacional, especulação imobiliária e novos meios para o crescimento saudável da cidade, a arte-cultura surge como alternativa em um horizonte permeado de conflitos. Os comuns, como veremos na entrevista a seguir, são importantes opções na construção de Cidades Criativas e inclusivas; é tudo aquilo que depende de ações comunitárias.
O blog entrevistou Daniel Motta, pesquisador e doutorando do Laboratório de Investigações Urbanas (Labinur/Unicamp) da Faculdade de Engenharia, Arquitetura e Urbanismo (FECFAU/Unicamp), para nos contar um pouco melhor como funcionam os comuns e como se dá a relação entre arte-cultura e mercado como diretrizes no planejamento urbano de uma cidade como São Paulo. A partir da experiência com o Parque Augusta, no centro da capital paulista, Daniel desenvolveu a pesquisa “Criando Comuns: As cidades criativas como experiência de autogestão. O Parque Augusta e o comum urbano” e em breve vai defender seu doutorado na FECFAU-Unicamp.
Daniel, qual foi a sua trajetória até o desenvolvimento dessa pesquisa e por que você decidiu explorar esse tema?
- A minha formação toda é na área das Artes, na área da música. Eu fui fazer um mestrado na Espanha em 2013 e morei numa cidade em que eles elaboraram um mestrado em violão clássico, na história que a cidade tinha de ser um centro de pesquisa e de ensino do violão. Eu voltei de lá pensando um pouco do porquê que eles conseguem fazer isso lá e aqui não. E (aqui no Brasil) tava no fervilhar da discussão da Cidade Criativa, da economia criativa como essa perspectiva de economia do futuro, da economia do Século XXI, então eu comecei a pesquisar o tema, e quando eu voltei para cá eu caí no meio da discussão do plano diretor daqui da minha cidade, de Jundiaí, e como eu fazia parte de um coletivo de cultura, o coletivo começou a participar da elaboração do plano diretor daqui sob o viés da cultura e de tentar entender como as propostas de cultura poderiam servir de base para elaboração do plano diretor da cidade. Com isso, participei do Conselho do plano diretor e continuei pesquisando o tema. Daí fui para o doutorado da Unicamp em cima dessa ideia de como que a arte-cultura tem que ser o eixo de desenvolvimento das cidades, e não as outras áreas como normalmente a gente tá acostumado.
Então foi desse ponto de partida, tentando essa hipótese, e aí começamos a pesquisar na bibliografia que existia, e ela é sempre em cima de uma visão utilitarista da cultura - e mercadológica. Então como que a gente elabora e fomenta novos negócios? Como que a gente cria um ambiente corporativo para negócios relacionados com a cultura? Como que a economia da cultura se relaciona com outros setores da economia principalmente a partir da quarta Revolução Industrial? Porque daí a gente tem uma influência muito forte do design das novas tecnologias da internet das coisas, Inteligência Artificial, então isso se relaciona de uma forma meio estranha com a cultura, se usa a cultura como faceta para esse novo estágio do desenvolvimento do capitalismo.
O contexto do capitalismo que nos encontramos é de superacumulação, de superconcentração de renda e de desestímulo a propostas comunitárias, de desenvolvimento comunitário. Estamos concentrando cada vez mais, pensando cada vez mais individualmente, e isso tem reflexos na hora que pensamos na cidade, principalmente nas cidades brasileiras. Temos visto cada vez mais essas ilhas de concentração de poder e riqueza que vão contra a ideia de uma cidade aberta, de uma cidade pensada através das pessoas.
As correntes que existem no urbanismo relacionadas a esse tema vão sempre pensando nessa ideia do empreendedorismo individual, do grande gênio, de ter grandes equipamentos culturais que poderiam absorver e fomentar as culturas a partir de empréstimos e de financiamentos internacionais de grandes agências que fomentariam esse pensamento de vanguarda. E na pesquisa a gente foi entendendo que, claro, quando a gente fala de cultura e de arte, a gente tem que falar das pessoas e tem que falar dos lugares que estão produzindo, que essa produção é territorializada, e que essa vertente toda de pensamento vem no sentido de quase que apagar essa diversidade cultural que existe nos lugares para instituir uma que é institucionalizada através desses grandes centros de pesquisa, grandes arquitetos internacionais, grandes linhas de fomento.
Aí então começamos a entender que, primeiro, a cultura é produzida nos locais e pelas pessoas. Cultura não é uma coisa de experts de grandes mentes, é a forma pela qual as pessoas se manifestam. Como que a gente vive? Isso é cultura. Por isso que ela é tão diversa e por isso que ela demarca modos de vida e por isso que ela agrega pessoas. Por isso que ela dá sensação de pertencimento e de identidade.
Como que a gente faz para entender que o horário que a gente sai para trabalhar e volta pra casa é cultura, assim como os instrumentos que a gente toca é cultura; as músicas que a gente canta; os desenhos que a gente pinta; o tipo de trabalho que a gente faz; o tipo de cidade que construímos. Tudo isso é cultura. Se entendermos isso e colocarmos isso como eixo do nosso planejamento, teremos mais chances de atingir a ideia de cidade, o ideal de cidade que a gente imagina, do que propriamente ficar importando padrões e maneiras de pensar cidade e o que é uma cidade ideal por aí.
Então a gente desaguou nesse ramo todo dos comuns, de entender que a cultura só existe como um comum; a cultura não é isolada, e o comum se estabelece no fazer. Então, quando eu entendo quais são as manifestações das pessoas deste lugar, desse território, valorizo e estabeleço ações a partir disso, eu começo a construir comuns que extrapolam essa ideia que a gente tem bastante difundida de horta comunitária, associação de bairro. Então passamos a entender que dá para construir a cidade como um comum. O ponto de ônibus, o horário do ônibus, os tipos de trabalho que vamos ter, os tipos de regulamentação que vai ter, os tipos de educação que vão existir, tudo isso passa a ser um comum construído coletivamente. E o poder público não consegue mais atender a essas demandas por bastante falta de ferramentas e interesse em atender essas demandas porque ele passa a ser também um feudo de poder, de concentração de poder, e o mercado atua em seu interesse próprio.
Nós nos colocamos neste cenário através da atuação das pessoas em cuidar da sua vida de forma coletiva e comunitária, estabelecendo comuns a partir das manifestações da vida que as pessoas têm, então a pesquisa elaborou uma série de procedimentos que podem favorecer quem se interessar em fazer planejamento a partir da vida das pessoas e da criação de comuns.
As Cidades Criativas como conceito, deve-se seguir o que é determinado pela Unesco ou podemos fugir um pouco e tratar o assunto como algo mais abrangente durante o planejamento urbano?
- Na nossa concepção, durante a pesquisa, entendemos que tem que ser diferente. A Unesco restringe a ideia do que é uma Cidade Criativa e ela acaba impondo uma série de determinações para cidades que se colocam debaixo desse selo, que esvazia o conceito de uma cidade criativa. Uma cidade criativa, no frigir dos ovos, é uma cidade que tá o tempo inteiro se reinventando a partir das demandas e das ações dos seus cidadãos. Nesse conceito de cultura mais amplo, mais antropológico da manifestação da vida das pessoas, é uma cidade que está respondendo o tempo inteiro às ações que as pessoas têm na cidade. A hora que a Unesco coloca o selo de Cidade Criativa, a Cidade da Música, por exemplo, ela apaga todas as outras manifestações que não são musicais que tem na cidade, mas mais do que isso, as cidades passam a procurar o selo da Unesco como uma forma de validação de um processo de financeirização do próprio território.
A ideia de cidades criativas da Unesco passa a funcionar mais como uma fachada, ou como uma caricatura do que pode ser uma cidade criativa para conseguir mais recursos e mais financiamentos dentro de parâmetros estabelecidos por eles que muitas vezes são completamente alheios e fora da realidade das cidades para que eles consigam entrar nesse circuito de financeirização do território. Então a cidade criativa, na nossa concepção, tem que estar afastada dessas concepções e voltada para formas de fazer valorizar a vida das pessoas. A vida das pessoas é muito mais plural, é muito mais rica e dinâmica do que a Unesco dizendo o que é música ou não, o que é artes plásticas ou não, o que é gastronomia ou não.
A concepção da Unesco faz parte de um jogo, de um de um teatro de financeirização do território para grandes empresas, para grandes arquitetos, para grandes escritórios, e mantém essas cidades, principalmente no sul global, presas, dependentes desses grandes circuitos de financeirização e de Capital internacional.
É possível tratar a Cidade Criativa ou até os comuns por si só como algo “rentável” em face da do mercado imobiliário especulativo?
- Os dados que a gente tem da economia da cultura e da economia criativa mostram que é um setor muito pujante economicamente falando no Brasil, que é um deserto de incentivos fiscais, de recursos financeiros para a cultura, ainda mais depois dos últimos seis anos em que a cultura virou uma espécie de demônio. A economia criativa representa mais de 3% do PIB brasileiro. Isso é mais do que a indústria automobilística brasileira. Isso sem nenhum tipo de incentivo ou tendo só a Lei Rouanet como principal instrumento e ainda assim aplicada de uma forma muito incompleta ainda.
Essa é uma das coisas que a gente debate bastante na tese, que apesar de ser economicamente viável e interessante por diversos aspectos por melhorar a condição de vida dos territórios onde se investe em cultura e onde se tem uma cultura pujante, o ponto principal da cultura e do investimento em cultura, principalmente do ponto de vista das cidades é recuperar a inutilidade da vida. A nossa vida não tem que ser útil, nossa vida tem que ser inútil, ela tem que bastar por ela mesma. Quando você faz uma manifestação cultural, qualquer que seja você faz por ela mesma. O dinheiro, sem você ter coisas para comprar ele não serve para nada. A cultura sem ter outra coisa além dela ela serve por si mesma, ela se basta.
A gente vai numa apresentação musical, numa peça de teatro não porque vamos dinamizar a economia do lugar ou porque vamos gerar riqueza, ou porque vamos gerar empregos - isso tudo acontece também -, mas o maior valor temos na manifestação cultural na peça de teatro que pagamos ingresso é a peça de teatro, é aquilo que ela proporciona pra gente naquele momento. O Parque Augusta por exemplo, apesar de ter toda a valorização do entorno, ele não serve para nada. Ele serve para ele mesmo. Ele serve para contemplarmos a vida por ela mesma.
Nós lutamos por isso. Na hora que estabelecemos um comum no Parque Augusta, nós não estamos estabelecendo esse comum pensando na valorização imobiliária ou no quanto que a vizinhança vai ficar melhor ou pior, mas lutamos pelo comum lá e se estabelece um comum pelas possibilidades de vida que surgem a partir de ter um parque como aquele naquele lugar.
Claro que todos esses outros elementos da especulação imobiliária, da valorização territorial, da melhoria de vida e todas as questões que vêm a partir daí, do porquê que precisa ser no centro de São Paulo, numa região que já está com um monte de infraestrutura. Tudo isso tem que ser levado em consideração. Mas a luta pelo comum se dá pelo comum, pela elaboração daquele espaço, pela valorização da vida, não por um além.
Respondendo à pergunta, a partir disso, mesmo com este ganho a gente tem ganhos econômicos: a economia da cultura, a economia criativa, ela dá ganhos econômicos absurdos. É só a gente pensar no que Hollywood faz para os Estados Unidos, no que o rock faz para Inglaterra, e no que as nossas manifestações tradicionais como samba (faz pelo Brasil); todas as nossas manifestações religiosas de procissão. Tudo o que a gente faz gera renda, gera dinheiro. Se a gente tivesse algum incentivo real para isso a gente teria muito mais. Mas a disputa do comum e da cultura não se dá só por valores econômicos, se dá por valores que são intrínsecos a ele mesmo, se dá pela inutilidade deles, porque eles valem por si.
O que mais chamou sua atenção durante sua pesquisa? O que você mais gostou de trabalhar durante esse processo?
- O primeiro ponto é o quanto que a gente tá refém dessas estruturas institucionais que criaram uma armadilha e que continuamos bancando essa armadilha. Então nós não conseguimos imaginar formas de autogestão dos nossos territórios, das nossas comunidades, que não passem por uma via institucionalizada, seja pelo mercado, seja pelo Estado, e que atualmente tanto o mercado, quanto Estado são a mesma coisa quase, um é um braço do outro.
A pesquisa abre um viés, uma possibilidade de autodeterminação e de autogestão das pessoas pelas pessoas, independente da atuação do mercado ou do Estado. Tendo força, você conseguindo estabelecer comuns, você conseguindo estabelecer essas formas de autogestão, de auto-regulação, você consegue superar essas estruturas que estão dadas hoje em dia e que a gente toma como imutáveis.
O segundo ponto forte da pesquisa é a ideia da cultura tão forte quanto todos os outros setores que estão estabelecidos e que atuam na nossa vida. Ela é tão poderosa que ela é utilizada constantemente como ferramenta. Então sim, a cultura é potente e forte o suficiente para estabelecer padrões de construção da sociedade, diferentes desses que estão estabelecidos por aí.
Acho que o terceiro ponto fundamental é o do inútil, né? A gente tem que restabelecer o papel do inútil na nossa vida. Nossa vida tem que se tornar inútil, ela tem que ser inútil. Esse utilitarismo que a gente continua pregoando é devastador. A nossa vida tem de servir por ela mesma, e quem vai estabelecer os critérios de condução da nossa vida somos nós mesmos a partir desse princípio. Então a minha vida ela é como é por causa da herança cultural e do caldeirão cultural no qual eu estou inserido e eu tenho a capacidade de me organizar e de autogerir, e isso se reflete então no território, e aí a gente estabelece o protocolo, os procedimentos para que isso se transforme num planejamento territorial autogerido e auto-gestado pelas pessoas que se entendem autônomas e independentes vivendo em comunidade para lidar com as suas próprias vidas.
Por fim, existe cooptação de movimentos culturais por parte do Estado e do mercado inclusive quando se trata dos comuns?
-Acontece o tempo inteiro. Pra ficar num exemplo mais recente e gritante, o carnaval de São Paulo. A gente passou por um momento de quase proibição do carnaval. Através da insurgência e do afrouxamento do poder público, a gente teve esse “boom” do carnaval de rua de São Paulo. Muito legal, até que o poder público resolveu exigir um monte de coisas de novo e isso arrefeceu um monte de blocos, principalmente os menores. Quem sobreviveu? Os maiores, que têm patrocínio da AMBEV, que têm patrocínio de grandes artistas.
São Paulo passa a ser um enorme carnaval, tem um carnaval gigantesco, mas só pro Baiana System, que vai lá na frente do Ibirapuera e leva milhões de pessoas, tudo institucionalizado, gradil organizando as pessoas, controle de quantas pessoas podem ter ou não, como pode ser ou não, de horário. Então a prefeitura fica com todo ganho simbólico do carnaval para si, boa parte do ganho econômico do carnaval para si.
Então o poder público fica com todos os ganhos do carnaval e acaba com as manifestações autóctones, as manifestações próprias do carnaval e das pessoas que vão sair para o carnaval, porque faz parte da vida delas. Então isso acontece o tempo inteiro na cultura.
*Fabrício Albergaria é jornalista e esta matéria faz parte do programa da bolsa Mídia Ciência concedida ao autor pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
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